quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Laranjas podres

Os feirantes separavam suas frutas ao amanhecer, antes que chegassem os clientes. As estragadas deveriam ser descartadas, antes que contaminassem as outras.

Valentim era o menor dos três. Eram todos magros como os restos de cachorros mortos encontrados na Rua França, às margens do esgoto a céu aberto, junto a toda podridão daquela gente. Se a infância deve ser lúdica em qualquer lugar, também lá o seria. Laranjas podres, cascas de ovo, sacolas plásticas rasgadas, caixas de leite: até o lixo era livre.

E eles andavam sobre a imundice, sujos e imponentes. Eram os heróis do bairro sem glória. Nasceram e cresceram na lama, eram como caranguejos, como irmãos. Jonas era o mais forte, mais corajoso, protegia os outros como um baluarte, enquanto Ezequiel sorria, dizia aonde ir: praia, canal, maré cheia, becos, ladeiras.

As pessoas ali se conheciam de longínquos carnavais, sob pesadas e brilhantes fantasias, guerreiros e lanceiros, vendedores de umbus maduros em sacos de nylon amarelo, que permitia o subterfúgio da seiva, dando um odor azedo ao dia que acabava de nascer.

O novo dia tinha a mesma fedentina da véspera. Os raios avermelhados que vinham da praia adentraram a lona, subitamente levantada e fizeram despertar Valentim, que abrindo os olhos vislumbrou a silhueta de Jonas, que saía para ajudar Felício na pescaria. Era como um pai. Embora desconhecesse tal sentimento, Jonas era seu pai. Saía pelas ruas saudando os pobres como ele, arrastava a rede com a virilidade e malemolência do homem do mar, e, acima de tudo, o protegia. Jonas era tudo o que Valentim sonhava ser.

O velho Zózi, que viveu mais que qualquer outro velho dali, contava histórias antigas: dos ruivos, gabirus, da praieira. Sem uma perna, passava o dia encostado ao muro de um casarão em ruínas, lembrando em risos o passado, advertindo em prantos o futuro próximo. Chamou Jonas para mostrar-lhe a mancha da traição que encobria o Sol. O rapaz comoveu-se com sua ilusão, devia estar ficando cego. Preveniu-o a respeito de um vergalhão solto no casarão, que tivesse cuidado ao arrastar-se entre os pregos. Afinal, era um velho sábio e bom, apesar da caduquice.

Valentim olhava por cima do mar, esperando a volta de Jonas. Ezequiel, já na rua, se aprontava para a embolada. Era noite clara, e iam ver as estrelas do alto, no último andar do casarão. O velho Zózi já havia se recolhido, os cachorros rondavam o lugar, com suas chamativas costelas. Subiram os três, contemplando a noite do Recife. Ezequiel contou sobre o carro novo de Manoel Cândido, o comerciante; era tudo o que eles queriam ter. Pensaram sobre o que ou quem gostariam de ser. Valentim sabia. Valentim era o menor dos três.

Foi sentindo o sal exalado pelo corpo de Jonas que seus braços magros o empurraram para o negro da noite. Valentim era o menor dos três. Jonas, o maior, sentiu o vergalhão atravessar seu corpo viril fazendo com que o sangue escorresse pelo chão de terra, e lá ficou, até que nascesse o novo sol, sem manchas. Na calçada, além da sujeira habitual, o sangue seco. Valentim sabia. Queria ser Jonas.

sábado, 19 de setembro de 2009

Suicídio literário

Era infernal o calor do cobertor quando Miguel despertou no escuro de seu quarto. Jogou para o lado o travesseiro ensopado de suor. Abriu as cortinas esperando, em vão, pela invasão da luz matinal. Eram 3h da manhã e sentia agora o amargo da garganta seca. No caminho até a geladeira, teve uma estranha sensação de estar acompanhado, embora morasse sozinho.

A água gelada foi um imenso alívio em meio ao ardor da madrugada inebriante, que tão cedo não o deixaria dormir tranqüilo. Deitou novamente e fechou os olhos: a luz do computador surgia como um flash em sua mente, e todas as palavras que já havia escrito eram sussurradas em seus ouvidos, cada vírgula lhe fixava os olhos. Desejou que fosse um pesadelo, mas sabia que não estava dormindo; não conseguiria.

Descerrou os olhos, novamente a escuridão difusa. Levantou por impulso, com uma angústia que lhe doía a boca do estômago.Na sala, o susto que curou até sua azia espiritual: Dona Henriqueta, sentada em seu sofá, olhava-o atirando a quem é de direito toda a culpa. Até que ponto sua insônia o levaria?- pensou. E a ingênua crença de ilusão noturna continuaria caso ela própria não tivesse tomado a atitude.

-É inconcebível que não te envergonhes de tal atitude, senhor.- disse a velha inconformada.

Miguel se recusava a acreditar que realmente a ouvia, ainda que ele falasse como a Dona Henriqueta de seu livro

-É inaceitável apenas que interrompa meu sono para me importunar, assombro!- bradava Miguel cobrindo os olhos.

-Então achas justo o que tens feito conosco ao longo de todas essas páginas?- o espectro falava com desfaçatez enquanto se aproximava do rapaz.

-Nós?

Miguel afastou as mãos do rosto e olhou, com olhos vidrados, todos os seus personagens caminhando pela sala do seu apartamento, suplicando por um roteiro diferente. Analisou que discutir com a própria imaginação já beirava a loucura, e precisava finalmente dormir. Caminhou delirante até o quarto, onde as janelas abertas davam passagem ao vento, esvoaçando a cortina. Deveria se afastar de todos aqueles fantasmas para sentir-se pelo menos lúcido. Enquanto se encaminhava para a cama, viu a menina ruiva em cima do criado-mudo, o marinheiro húngaro no umbral da porta, e Dona Henriqueta deitada na cama. Todos o cobravam com olhos lancinantes.

Não havia como fugir sem alterar o que já havia em seu romance. A janela do 9º andar o convidava, o chão pareceu mais confortável que sua cama. Do ar ele olhava para o céu, e todas as suas palavras o seguiam, lançando-se do alto.