sábado, 1 de outubro de 2011

Something really cool: ice

Em breve me mudarei para um novo apartamento, mais amplo. A perspectiva do novo me deixou de tal maneira entusiasmado, que desde cedo comecei a pesquisar os novos móveis, imaginando como eles ficariam no meu novo lar. Entre sofás, estantes, armários e tapetes, foi o ente mais visitado da cozinha que me chamou atenção. Ela estava ali, como uma nave futurista, com alguns acessórios tão úteis quanto dispensáveis. Mas eu já podia vislumbrar as latas de cerveja acomodadas ali.

- Posso ajudá-lo?

- Ah, claro! Eu gostaria de ver aquela geladeira.

E assim fomos formalmente apresentados. Segundo Marta, a vendedora, ela tinha realmente tudo o que eu precisava e um pouco mais. De fato agradou-me. Como estava no meu horário de almoço, não tinha muito tempo. Disse à Marta que voltaria no dia seguinte para ver umas estantes.

Outro dia sem almoço, mas eu estava lá. Estantes altas, baixas, espaçosas, estreitas... e no breve instante em que minha prestativa atendente se encaminhou a outro cliente, fui dar mais uma olhada na geladeira. Éramos só nós dois, sem vendedores, sem ofertas no carnê, um diálogo mudo. Abri todas as suas gavetas, inspecionei cada suporte. Nada de errado, ela parecia mesmo ser per...

- Perfeita, não? – disse Marta por trás do meu ombro- Vai levar também?

- É, bem provável que sim. Gostei dela. Mas agora, voltemos às estantes.

Ainda faltavam alguns meses para a mudança, não tinha pressa nas compras, e além do mais, estava extremamente atarefado no trabalho, de modo que deixei de lado as andanças pelas lojas de móveis, e acabei até mesmo esquecendo tudo aquilo. Até a noite de terça-feira, em que, ao checar a correspondência, encontrei um envelope com a logotipo da tal loja. Era um bloqueto de cobrança referente a uma das parcelas da dita geladeira. Pensei de pronto que fosse um engano, nem sequer me preocupei.

No mês seguinte, na mesma data, lá estava o envelope colorido, como o primeiro. Devido ao extremo cansaço que sentia, só queria ir para a cama, e só pensei que era estranho, mas não impossível que o erro se repetisse.

Entre as loucuras e correrias da mudança, a carta do terceiro mês, se existiu, não me encontrou. E tudo corria nos conformes no meu novo endereço, quando veio novamente a já nem tanto inesperada correspondência. Só então decidi entrar em contato com a loja.

Não entendi bem o porquê, mas parece que a telefonista tinha ordens de chamar justamente a Marta, caso eu ligasse.

- Bom dia, Sr. Eduardo. Ainda bem que, enfim, o senhor entrou em contato. Precisamos negociar os atrasos no seu pagamento, será melhor para o senhor.

- Err... bem, desculpa, mas eu não sei do que se tratam esses pagamentos.

- Como não, Sr. Eduardo? É da geladeira.

- Mas eu não estou com a geladeira.

- Não se preocupe, em breve a enviaremos ao seu novo endereço.

- Mas eu nem sequer fechei a compra.

- Sem problemas, é só vir aqui assinar os papéis e...

- A senhorita não está entendendo! Eu não vou ficar com a geladeira.

- Como assim “não vai ficar”? O senhor parecia tão interessado, viu seus mais íntimos detalhes, todos os acessórios ... você disse que GOSTOU dela!

- Sim, me interessei muito, mas não dei garantias de compra. E acabei mudando de idéia, não sei se ela daria certo aqui nesse apartamento, sabe. Além do mais, também gosto da minha antiga geladeira. Não vinha funcionando bem, mas o motor é bom, só precisava trocar a borracha.

- Pode dizer: o senhor nunca quis realmente levá-la pra sua casa não é?

- Não é bem assim. Eu gostei muito do design, mas é que agora não dá pra ficar com ela. Quem sabe num futuro não é? Hoje em dia as geladeiras duram tão pouco.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Dilatando a paciência

Era pra ser um simples exame de vista. E de fato foi. O problema foi só o que veio depois.

Bem, eu não sei se aquele colírio de dilatar a pupila é usado como droga, ou se alguém já pensou nisso, mas é uma viagem (principalmente para uma míope) ver as coisas se embaralhando de perto. Pessimista que sou, não podia deixar de ver o lado ruim da coisa, até porque toda droga tem sua bad trip: os olhos ficam muito mais sensíveis à luz.

Saí da clínica às 11h de uma manhã clara e sem nuvens, e fui instantaneamente ofuscada. Pus os óculos escuros e tentei me acostumar um pouco à claridade. Como estou acostumada a fazer o caminho, pensei que não seria tão difícil voltar para casa, era só olhar para baixo. Quase fui atropelada umas três vezes, mas tudo bem, isso é normal quando eu enxergo(?) também.

Cheguei em casa como quem chega a um oásis, toquei a campainha como um sedento que pega uma moringa d'água, esperando que um dos 8 habitantes do meu lar abrisse a porta. Toquei uma, duas, três... na sétima tentativa, meu telefone tocou. Era minha mãe avisando que estava na feira e não tinha ninguém em casa.

Parece que minha mãe sabe o momento certo de fazer a coisa errada: neste exato instante, um carro estranho foi passando devagar, olhando pra mim na porta de casa, enquanto eu falava no telefone- pronto, agora que me assaltam logo.

-Tchau, mãe, tenho que desligar, vemlogo!- guardei o celular

O carro voltou e parou bem na minha frente. Fui desesperando cada vez mais, já que não enxergava nada. Mas de cara descartei a hipótese de sequestro: sou pobre e não tenho cartão de crédito, nem ia servir, eles iriam entender...

-Cara estranho: Bom dia.
-Bianca desesperada: ô moço, eu sou sem teto, cega e pobre, é melhor você sequestrar outra pessoa.

- CE: Dona Sampaio é aqui?

-Bianca aliviada: ah, é minha mãe que você vai sequestrar? Ela já ta vindo...
- CE: é uma entrega pra ela (pondo uma caixa de aspirador de pó na minha frente). Assina esse papel por favor.

- ...

- Bianca tranquilamente: A caneta.

- CE: eu sem caneta, moça.

- Bianca não tão tranquila: como quer que eu assine sem caneta?

- CE: a sinhóra num tem uma aí não?

- Bianca indignada: não é a MINHA obrigação andar com caneta na bolsa, e eu ainda estou pra fora de casa e... espera o telefone ta tocando.

{Mãe, cadê você? Eu preciso entrar, ta calor, o Sol ta me cegando, e seu bendito aspirador de pó resolveu chegar logo agora. Pra que você quer um aspirador de pó, você nem usa a cafeteira ou a fritadeira elétrica! A propósito, você tem uma caneta aí...? Vem logo!}

- Bianca perdida: então, cadê a caneta?

-CE: é que a mulher roubou minha caneta.

- Bianca ainda mais indignada: você deixou que uma mulher lhe roubasse uma caneta? E se fosse uma mercadoria, como você ia explicar pra distribui...

- CE impaciente: pronto, moça, já achei outra caneta, ó, toma!

- Bianca conformada: não posso assinar, não enxergo.

- CE se alterando: mas como a senhora anda pela rua sem enxergar?

- Bianca já alterada: e como é que o senhor faz entregas sem caneta?

- CE p* da cara: ó, moça, tem um X aqui, é só botar seu nome do lado.

- Bianca mais p* ainda: eu sei como se assina, obrigada!

Papéis assinados e entregues

- CE compadecido: não é perigoso a senhora ficar aí sozinha?

- Bianca inconformada: ah, agora tu ta com medo que me roubem o aspirador de pó? Na hora de obrigar uma pobre cega a assinar um papel que eu nem li, você não teve pena... Pode deixar que a minha mãe chega a tempo de salvá-lo.

Ele entrou no carro com cara de quem nunca mais faria uma entrega em minha casa.

Enquanto o carro ia embora, olhei para o final da rua, e contei 5 segundos até minha mãe virar a esquina. 10. 20. 2 minutos. Resolvi sentar sobre a caixa do ultramegapowertuboturbo e esperar. E depois de meia hora, quando eu já estava cega, desamparada e as pessoas passavam por mim jogando moedas, eis que aparece minha mãe:

- Ahhhhh meu aspirador de pó chegoooou!

Eu, completamente esgotada pela desidratação depois de horas sob o sol:

- Mãezinha, você não sabe o que me aconteceu...

- Mas cadê a minha máquina de lavar?

É, mãe é mãe. Mas às vezes é cilada.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Bondinho de Santa Teresa

Quando levo minha alma para passear, troco os centavos suados pelo bilhete de entrada. Acompanho o embarque das fitas dos chapéus dos malandros, das flores dos vestidos das moças, das tranças loiras dos cabelos das meninas. No balanceio do caminho, os homens pendurados agarram-se nas barras, enquanto dispensam atenção às pernas de louça da moça sentada.

Consigo andar sobre os arcos da Lapa sem me desequilibrar, como bobos ou trapezistas em seus trajes cintilantes. Posso voar sobre o Circo Voador, e ficar mais alta que todos os boêmios entre bares e calçadas. A barra do meu vestido veste a Baía de Guanabara, até que serpenteio a rua na subida da ladeira, com um gingado espontâneo de curvas.

Deixo o dia para trás, no mundo real das luzes da cidade: postes, faróis e largas avenidas. A luminosidade agora vem dos vagalumes e das luminárias dos bares e ateliês. Os artistas caminham, conversam, cumprimentam e fazem arte. As artes voam, gritam, apresentam e identificam este lugar.

O que vejo de cima é igual a todos os maçantes dias: a mesma ponte, o mesmo velho mar. A lua inteira, não é como uma semana atrás, mas até seu ciclo se repete, seu lado escuro é sempre igual. E o Largo das Neves é o mesmo, vendo o bonde passar, e o Cine Odeon é o mesmo, vendo filme passar.

Uma moça com brincos de semente corre para alcançar uma alça e segue viagem conversando com um dos passageiros no banco. Pensei ser gente dali, mas afinal, quem é essa gente? Todo mundo é de lá, mesmo que não esteja, não faça, não pense, não viva nem conviva os trilhos do bonde. Até o cego da terceira fileira sabe, que cada cheiro tem sua cor. A moça dos brincos desceu próximo a uma ladeira. Uma das tantas.

A noite alaranjada pelos postes lá embaixo já se anima. Descendo o morro, deixo o velho som do cavaquinho do músico solitário, para ouvir os batuques dos tambores que esquentam para a noite. Da calma do alto, das artes, me encaminho de volta à cidade do mundo real. O barulho do freio no trilho anuncia a chegada.

domingo, 25 de outubro de 2009

Novos velhos conceitos

Despir-se do narcisismo como convida Caetano: não é espelho esta cidade. No 15º andar na Avenida Paulista, procuro o mar no horizonte, como normalmente faria em Salvador. Mar de prédio, mar de gente. Definitivamente, não é espelho. Não encontro aqui as ladeiras do Pelourinho, as barracas de praia, ou os coqueiros de Itapuã. Não me toca, como a outros, cruzar a Ipiranga com a São João, como ver a extrema pobreza em cama de jornal na praça da Sé, ou ver o explícito tráfico e prostituição da janela do hotel no centro da capital. Sei que a cidade não é só isso, mas sendo necessário desconsiderar estes fatos para perceber seus encantos, é difícil aceitar tamanha ignorância.
Na praça, andei pela história, pelos banqueiros de outrora, pelos barões do café e seus monumentos na mesma praça, tropecei em mendigos e seus cobertores. São Paulo é rica em sua vontade de ser Chicago, verde na tentativa de Central Park, e linda em sua diversidade. Tem criança que bate, homem que apanha, polícia que corre, bandido que manda, família e domingo no parque. Meninas que brincam na calçada, meninas que choram sem pai, meninas que andam no shopping, meninas dos Jardins, meninas da Augusta. Todas gostam de happy end.
Eu não simpatizava com São Paulo. Nem um pouco. A ideia de engarrafamentos nas marginais, e seus odores, muita gente perdida e outro tanto no rumo errado, e de que o céu era cinza, não pela poluição, mas pela quantidade de prédios, que não nos permitiria vê-lo. E eu estava certa. São Paulo é isso, e mais um monte de defeitos, e outro monte de qualidades.
É uma cidade plural. É o plural da gastronomia, da arte e da arquitetura, mas dizer que há lugar para todos é hipocrisia. A não ser que a porta da igreja seja considerada um lugar decente para dormir. Hipocrisia também seria negar que isso exista em qualquer outra grande cidade. Porque todos nós temos prédios pichados dentro de nós, mas também temos ibirapueras, museus, mercados, enfim, o que tentamos mostrar. Até Liberdade nós temos em comum. Temperamento e tempo inconstantes, como de repente chovo na tarde de Sol.

domingo, 18 de outubro de 2009

Sampa trip

CAPÍTULO I- Sexta-feira

Antes de mais nada, a demora na postagem foi pela velocidade dos acontecimentos. Saí muito cedo, voltei muito cansada, e mesmo com minha boa vontade de postar durante a viagem, pagar 16 reais por 1 hora de internet no hotel não me parecia a melhor ideia.

Saí do dormitório às 4:30 da manhã, com mala, mochila, chaves, caderno, caneta, mentos, muito sono, e a velha sensação de estar esquecendo alguma coisa. Empurrei algumas coisas goela abaixo, porque não se pode chamar de café da manhã uma refeição feitas antes das 7h! Já me encaminhando para o ônibus, encontrei os amiguinhos do bem:

- E aí, Sampaio, trouxe o baralho pra rolar o truco?

- Claro, o baralho. O baralho? O baralho!

A velha sensação estava certa. Fui correndo (na minha velocidade habitual, claro) até o quarto, achei o baralho embaixo de alguns livros e anotações, e voltei em menor velocidade, para evitar a fadiga. No escuro da madrugada, senti que estava sendo seguida ao atravessar a ponte. Hesitei um pouco em olhar para trás, mas quando finalmente o fiz; ninguém. Acordar cedo realmente não é de Deus. Por volta de 6h, o ônibus era um mar de gente roncando. Só eu acordada. Percebe-se que o Sol e eu não nos entendemos quando o assunto é sono.

Rios, pontes e pedágios, até que enfim chegamos ao destino: prédios, marginais, vendedores de carregador de celular nas marginais, barracos sob viadutos, trânsito. É, isto é São Paulo.

Fiquei hospedada em um hotel da Av. Ipiranga, que, segundo as más línguas, foi uma casa de tolerância décadas atrás, porque os corredores em forma de labirinto são bem suspeitos, sem comentar o que se pode ver na madrugada no centro de São Paulo. Sentia-me uma câmera escondida do Fantástico. Mandei as malas pelo elevador e subi pelas escadas, para poupar tempo. Ledo engano. Não entendia porque o corredor começava pelo 319, depois passava para o 305, até que quase perdida consegui achar meu quarto, e descobri que eram vários elevadores e várias escadas. Consegui achar minha mala na frente de um dos elevadores que ficava do lado de uma das escadas, e ainda refiz o caminho até o quarto sem me perder, mas ainda havia a sensação de estar esquecendo alguma coisa. De repente ouvi uma voz ao longe chamar meu nome. Minha colega de quarto não era tão sagaz quanto eu para achar caminhos em labirintos. Fui buscá-la antes que o ônibus saísse sem nós.

Museu da Língua Portuguesa- a primeira visita foi feita logo após o almoço e com uma boa dose de sono, mas o fato de não ser guiada ajudou bastante. Não há nada mais chato em um museu do que alguém fazendo perguntinhas-pegadinhas para depois iniciar uma explicação detalhada na obra, que consegue prender sua atenção em qualquer coisa que não seja o tema em questão. Atravessando a rua, chegamos à Pinacoteca, onde fomos recebidos pela Ninfadora Tonks professora e artista plástica do cabelo cor de chiclete ploc, que nos conduziu pelas exposições de Matisse, Almeida Júnior, modernistas e outros tantos. Mas a melhor obra eram piscininhas com sopeiras de porcelana, que encostavam umas nas outras e faziam barulho de chuva caindo na telha.

A noite era de jogatina no saguão do hotel, som de música com zuada de truco, coisital. Resolvemos ir para um lugar mais tranqüilo para jogar. A coisa funcionou mais ou menos assim:

- Ei, vamos jogar no quarto do Zé?

- Êa, jogatina no quarto do Zé! Onde é?

- Lá no 14.

- Chamar mais 14?

- O quê? Festa no 14?

E quando chegamos, parecia que a fuzarca tinha se transferido do saguão para o quarto. Enfim, é o que chamo de esquema “Rua Flores, oito e meia”.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Laranjas podres

Os feirantes separavam suas frutas ao amanhecer, antes que chegassem os clientes. As estragadas deveriam ser descartadas, antes que contaminassem as outras.

Valentim era o menor dos três. Eram todos magros como os restos de cachorros mortos encontrados na Rua França, às margens do esgoto a céu aberto, junto a toda podridão daquela gente. Se a infância deve ser lúdica em qualquer lugar, também lá o seria. Laranjas podres, cascas de ovo, sacolas plásticas rasgadas, caixas de leite: até o lixo era livre.

E eles andavam sobre a imundice, sujos e imponentes. Eram os heróis do bairro sem glória. Nasceram e cresceram na lama, eram como caranguejos, como irmãos. Jonas era o mais forte, mais corajoso, protegia os outros como um baluarte, enquanto Ezequiel sorria, dizia aonde ir: praia, canal, maré cheia, becos, ladeiras.

As pessoas ali se conheciam de longínquos carnavais, sob pesadas e brilhantes fantasias, guerreiros e lanceiros, vendedores de umbus maduros em sacos de nylon amarelo, que permitia o subterfúgio da seiva, dando um odor azedo ao dia que acabava de nascer.

O novo dia tinha a mesma fedentina da véspera. Os raios avermelhados que vinham da praia adentraram a lona, subitamente levantada e fizeram despertar Valentim, que abrindo os olhos vislumbrou a silhueta de Jonas, que saía para ajudar Felício na pescaria. Era como um pai. Embora desconhecesse tal sentimento, Jonas era seu pai. Saía pelas ruas saudando os pobres como ele, arrastava a rede com a virilidade e malemolência do homem do mar, e, acima de tudo, o protegia. Jonas era tudo o que Valentim sonhava ser.

O velho Zózi, que viveu mais que qualquer outro velho dali, contava histórias antigas: dos ruivos, gabirus, da praieira. Sem uma perna, passava o dia encostado ao muro de um casarão em ruínas, lembrando em risos o passado, advertindo em prantos o futuro próximo. Chamou Jonas para mostrar-lhe a mancha da traição que encobria o Sol. O rapaz comoveu-se com sua ilusão, devia estar ficando cego. Preveniu-o a respeito de um vergalhão solto no casarão, que tivesse cuidado ao arrastar-se entre os pregos. Afinal, era um velho sábio e bom, apesar da caduquice.

Valentim olhava por cima do mar, esperando a volta de Jonas. Ezequiel, já na rua, se aprontava para a embolada. Era noite clara, e iam ver as estrelas do alto, no último andar do casarão. O velho Zózi já havia se recolhido, os cachorros rondavam o lugar, com suas chamativas costelas. Subiram os três, contemplando a noite do Recife. Ezequiel contou sobre o carro novo de Manoel Cândido, o comerciante; era tudo o que eles queriam ter. Pensaram sobre o que ou quem gostariam de ser. Valentim sabia. Valentim era o menor dos três.

Foi sentindo o sal exalado pelo corpo de Jonas que seus braços magros o empurraram para o negro da noite. Valentim era o menor dos três. Jonas, o maior, sentiu o vergalhão atravessar seu corpo viril fazendo com que o sangue escorresse pelo chão de terra, e lá ficou, até que nascesse o novo sol, sem manchas. Na calçada, além da sujeira habitual, o sangue seco. Valentim sabia. Queria ser Jonas.

sábado, 19 de setembro de 2009

Suicídio literário

Era infernal o calor do cobertor quando Miguel despertou no escuro de seu quarto. Jogou para o lado o travesseiro ensopado de suor. Abriu as cortinas esperando, em vão, pela invasão da luz matinal. Eram 3h da manhã e sentia agora o amargo da garganta seca. No caminho até a geladeira, teve uma estranha sensação de estar acompanhado, embora morasse sozinho.

A água gelada foi um imenso alívio em meio ao ardor da madrugada inebriante, que tão cedo não o deixaria dormir tranqüilo. Deitou novamente e fechou os olhos: a luz do computador surgia como um flash em sua mente, e todas as palavras que já havia escrito eram sussurradas em seus ouvidos, cada vírgula lhe fixava os olhos. Desejou que fosse um pesadelo, mas sabia que não estava dormindo; não conseguiria.

Descerrou os olhos, novamente a escuridão difusa. Levantou por impulso, com uma angústia que lhe doía a boca do estômago.Na sala, o susto que curou até sua azia espiritual: Dona Henriqueta, sentada em seu sofá, olhava-o atirando a quem é de direito toda a culpa. Até que ponto sua insônia o levaria?- pensou. E a ingênua crença de ilusão noturna continuaria caso ela própria não tivesse tomado a atitude.

-É inconcebível que não te envergonhes de tal atitude, senhor.- disse a velha inconformada.

Miguel se recusava a acreditar que realmente a ouvia, ainda que ele falasse como a Dona Henriqueta de seu livro

-É inaceitável apenas que interrompa meu sono para me importunar, assombro!- bradava Miguel cobrindo os olhos.

-Então achas justo o que tens feito conosco ao longo de todas essas páginas?- o espectro falava com desfaçatez enquanto se aproximava do rapaz.

-Nós?

Miguel afastou as mãos do rosto e olhou, com olhos vidrados, todos os seus personagens caminhando pela sala do seu apartamento, suplicando por um roteiro diferente. Analisou que discutir com a própria imaginação já beirava a loucura, e precisava finalmente dormir. Caminhou delirante até o quarto, onde as janelas abertas davam passagem ao vento, esvoaçando a cortina. Deveria se afastar de todos aqueles fantasmas para sentir-se pelo menos lúcido. Enquanto se encaminhava para a cama, viu a menina ruiva em cima do criado-mudo, o marinheiro húngaro no umbral da porta, e Dona Henriqueta deitada na cama. Todos o cobravam com olhos lancinantes.

Não havia como fugir sem alterar o que já havia em seu romance. A janela do 9º andar o convidava, o chão pareceu mais confortável que sua cama. Do ar ele olhava para o céu, e todas as suas palavras o seguiam, lançando-se do alto.