sábado, 19 de setembro de 2009

Suicídio literário

Era infernal o calor do cobertor quando Miguel despertou no escuro de seu quarto. Jogou para o lado o travesseiro ensopado de suor. Abriu as cortinas esperando, em vão, pela invasão da luz matinal. Eram 3h da manhã e sentia agora o amargo da garganta seca. No caminho até a geladeira, teve uma estranha sensação de estar acompanhado, embora morasse sozinho.

A água gelada foi um imenso alívio em meio ao ardor da madrugada inebriante, que tão cedo não o deixaria dormir tranqüilo. Deitou novamente e fechou os olhos: a luz do computador surgia como um flash em sua mente, e todas as palavras que já havia escrito eram sussurradas em seus ouvidos, cada vírgula lhe fixava os olhos. Desejou que fosse um pesadelo, mas sabia que não estava dormindo; não conseguiria.

Descerrou os olhos, novamente a escuridão difusa. Levantou por impulso, com uma angústia que lhe doía a boca do estômago.Na sala, o susto que curou até sua azia espiritual: Dona Henriqueta, sentada em seu sofá, olhava-o atirando a quem é de direito toda a culpa. Até que ponto sua insônia o levaria?- pensou. E a ingênua crença de ilusão noturna continuaria caso ela própria não tivesse tomado a atitude.

-É inconcebível que não te envergonhes de tal atitude, senhor.- disse a velha inconformada.

Miguel se recusava a acreditar que realmente a ouvia, ainda que ele falasse como a Dona Henriqueta de seu livro

-É inaceitável apenas que interrompa meu sono para me importunar, assombro!- bradava Miguel cobrindo os olhos.

-Então achas justo o que tens feito conosco ao longo de todas essas páginas?- o espectro falava com desfaçatez enquanto se aproximava do rapaz.

-Nós?

Miguel afastou as mãos do rosto e olhou, com olhos vidrados, todos os seus personagens caminhando pela sala do seu apartamento, suplicando por um roteiro diferente. Analisou que discutir com a própria imaginação já beirava a loucura, e precisava finalmente dormir. Caminhou delirante até o quarto, onde as janelas abertas davam passagem ao vento, esvoaçando a cortina. Deveria se afastar de todos aqueles fantasmas para sentir-se pelo menos lúcido. Enquanto se encaminhava para a cama, viu a menina ruiva em cima do criado-mudo, o marinheiro húngaro no umbral da porta, e Dona Henriqueta deitada na cama. Todos o cobravam com olhos lancinantes.

Não havia como fugir sem alterar o que já havia em seu romance. A janela do 9º andar o convidava, o chão pareceu mais confortável que sua cama. Do ar ele olhava para o céu, e todas as suas palavras o seguiam, lançando-se do alto.

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