segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Bondinho de Santa Teresa

Quando levo minha alma para passear, troco os centavos suados pelo bilhete de entrada. Acompanho o embarque das fitas dos chapéus dos malandros, das flores dos vestidos das moças, das tranças loiras dos cabelos das meninas. No balanceio do caminho, os homens pendurados agarram-se nas barras, enquanto dispensam atenção às pernas de louça da moça sentada.

Consigo andar sobre os arcos da Lapa sem me desequilibrar, como bobos ou trapezistas em seus trajes cintilantes. Posso voar sobre o Circo Voador, e ficar mais alta que todos os boêmios entre bares e calçadas. A barra do meu vestido veste a Baía de Guanabara, até que serpenteio a rua na subida da ladeira, com um gingado espontâneo de curvas.

Deixo o dia para trás, no mundo real das luzes da cidade: postes, faróis e largas avenidas. A luminosidade agora vem dos vagalumes e das luminárias dos bares e ateliês. Os artistas caminham, conversam, cumprimentam e fazem arte. As artes voam, gritam, apresentam e identificam este lugar.

O que vejo de cima é igual a todos os maçantes dias: a mesma ponte, o mesmo velho mar. A lua inteira, não é como uma semana atrás, mas até seu ciclo se repete, seu lado escuro é sempre igual. E o Largo das Neves é o mesmo, vendo o bonde passar, e o Cine Odeon é o mesmo, vendo filme passar.

Uma moça com brincos de semente corre para alcançar uma alça e segue viagem conversando com um dos passageiros no banco. Pensei ser gente dali, mas afinal, quem é essa gente? Todo mundo é de lá, mesmo que não esteja, não faça, não pense, não viva nem conviva os trilhos do bonde. Até o cego da terceira fileira sabe, que cada cheiro tem sua cor. A moça dos brincos desceu próximo a uma ladeira. Uma das tantas.

A noite alaranjada pelos postes lá embaixo já se anima. Descendo o morro, deixo o velho som do cavaquinho do músico solitário, para ouvir os batuques dos tambores que esquentam para a noite. Da calma do alto, das artes, me encaminho de volta à cidade do mundo real. O barulho do freio no trilho anuncia a chegada.

domingo, 25 de outubro de 2009

Novos velhos conceitos

Despir-se do narcisismo como convida Caetano: não é espelho esta cidade. No 15º andar na Avenida Paulista, procuro o mar no horizonte, como normalmente faria em Salvador. Mar de prédio, mar de gente. Definitivamente, não é espelho. Não encontro aqui as ladeiras do Pelourinho, as barracas de praia, ou os coqueiros de Itapuã. Não me toca, como a outros, cruzar a Ipiranga com a São João, como ver a extrema pobreza em cama de jornal na praça da Sé, ou ver o explícito tráfico e prostituição da janela do hotel no centro da capital. Sei que a cidade não é só isso, mas sendo necessário desconsiderar estes fatos para perceber seus encantos, é difícil aceitar tamanha ignorância.
Na praça, andei pela história, pelos banqueiros de outrora, pelos barões do café e seus monumentos na mesma praça, tropecei em mendigos e seus cobertores. São Paulo é rica em sua vontade de ser Chicago, verde na tentativa de Central Park, e linda em sua diversidade. Tem criança que bate, homem que apanha, polícia que corre, bandido que manda, família e domingo no parque. Meninas que brincam na calçada, meninas que choram sem pai, meninas que andam no shopping, meninas dos Jardins, meninas da Augusta. Todas gostam de happy end.
Eu não simpatizava com São Paulo. Nem um pouco. A ideia de engarrafamentos nas marginais, e seus odores, muita gente perdida e outro tanto no rumo errado, e de que o céu era cinza, não pela poluição, mas pela quantidade de prédios, que não nos permitiria vê-lo. E eu estava certa. São Paulo é isso, e mais um monte de defeitos, e outro monte de qualidades.
É uma cidade plural. É o plural da gastronomia, da arte e da arquitetura, mas dizer que há lugar para todos é hipocrisia. A não ser que a porta da igreja seja considerada um lugar decente para dormir. Hipocrisia também seria negar que isso exista em qualquer outra grande cidade. Porque todos nós temos prédios pichados dentro de nós, mas também temos ibirapueras, museus, mercados, enfim, o que tentamos mostrar. Até Liberdade nós temos em comum. Temperamento e tempo inconstantes, como de repente chovo na tarde de Sol.

domingo, 18 de outubro de 2009

Sampa trip

CAPÍTULO I- Sexta-feira

Antes de mais nada, a demora na postagem foi pela velocidade dos acontecimentos. Saí muito cedo, voltei muito cansada, e mesmo com minha boa vontade de postar durante a viagem, pagar 16 reais por 1 hora de internet no hotel não me parecia a melhor ideia.

Saí do dormitório às 4:30 da manhã, com mala, mochila, chaves, caderno, caneta, mentos, muito sono, e a velha sensação de estar esquecendo alguma coisa. Empurrei algumas coisas goela abaixo, porque não se pode chamar de café da manhã uma refeição feitas antes das 7h! Já me encaminhando para o ônibus, encontrei os amiguinhos do bem:

- E aí, Sampaio, trouxe o baralho pra rolar o truco?

- Claro, o baralho. O baralho? O baralho!

A velha sensação estava certa. Fui correndo (na minha velocidade habitual, claro) até o quarto, achei o baralho embaixo de alguns livros e anotações, e voltei em menor velocidade, para evitar a fadiga. No escuro da madrugada, senti que estava sendo seguida ao atravessar a ponte. Hesitei um pouco em olhar para trás, mas quando finalmente o fiz; ninguém. Acordar cedo realmente não é de Deus. Por volta de 6h, o ônibus era um mar de gente roncando. Só eu acordada. Percebe-se que o Sol e eu não nos entendemos quando o assunto é sono.

Rios, pontes e pedágios, até que enfim chegamos ao destino: prédios, marginais, vendedores de carregador de celular nas marginais, barracos sob viadutos, trânsito. É, isto é São Paulo.

Fiquei hospedada em um hotel da Av. Ipiranga, que, segundo as más línguas, foi uma casa de tolerância décadas atrás, porque os corredores em forma de labirinto são bem suspeitos, sem comentar o que se pode ver na madrugada no centro de São Paulo. Sentia-me uma câmera escondida do Fantástico. Mandei as malas pelo elevador e subi pelas escadas, para poupar tempo. Ledo engano. Não entendia porque o corredor começava pelo 319, depois passava para o 305, até que quase perdida consegui achar meu quarto, e descobri que eram vários elevadores e várias escadas. Consegui achar minha mala na frente de um dos elevadores que ficava do lado de uma das escadas, e ainda refiz o caminho até o quarto sem me perder, mas ainda havia a sensação de estar esquecendo alguma coisa. De repente ouvi uma voz ao longe chamar meu nome. Minha colega de quarto não era tão sagaz quanto eu para achar caminhos em labirintos. Fui buscá-la antes que o ônibus saísse sem nós.

Museu da Língua Portuguesa- a primeira visita foi feita logo após o almoço e com uma boa dose de sono, mas o fato de não ser guiada ajudou bastante. Não há nada mais chato em um museu do que alguém fazendo perguntinhas-pegadinhas para depois iniciar uma explicação detalhada na obra, que consegue prender sua atenção em qualquer coisa que não seja o tema em questão. Atravessando a rua, chegamos à Pinacoteca, onde fomos recebidos pela Ninfadora Tonks professora e artista plástica do cabelo cor de chiclete ploc, que nos conduziu pelas exposições de Matisse, Almeida Júnior, modernistas e outros tantos. Mas a melhor obra eram piscininhas com sopeiras de porcelana, que encostavam umas nas outras e faziam barulho de chuva caindo na telha.

A noite era de jogatina no saguão do hotel, som de música com zuada de truco, coisital. Resolvemos ir para um lugar mais tranqüilo para jogar. A coisa funcionou mais ou menos assim:

- Ei, vamos jogar no quarto do Zé?

- Êa, jogatina no quarto do Zé! Onde é?

- Lá no 14.

- Chamar mais 14?

- O quê? Festa no 14?

E quando chegamos, parecia que a fuzarca tinha se transferido do saguão para o quarto. Enfim, é o que chamo de esquema “Rua Flores, oito e meia”.