terça-feira, 7 de abril de 2009

Na medida da lata

Forca viva, alma líquida, olhos no chão. Ela era o que os outros não desejavam ser. O senso comum, o medo do perigo, tudo isso indicava a direção certa. E era pela oposta que ela costumava andar. Todos a chamavam, gritavam: placas, setas. Querer só o que se pode ver não a satisfazia. Agora sem ela, ainda há um mundo colorido antes do “compre já”. Frida não combina com as ruas frias, Warhol já não é pop. Tudo mudou, exceto o “agite antes de usar”. Comprava sonhos em frasquinhos; 350 mililitros. Tinha uma forma peculiar de ver o mundo, que não a via, e um estranho jeito de gostar de opostos. Por isso a fazia bem andar à noite, se camuflava no escuro.

Foi contando os trocados do café até encontrar o comércio mais próximo. O atendente a olhou e disse: vai levar quantos? Levaria todo o maço se pudesse, mas o bolso não estava para isso. “Três apenas”, respondeu tentando desviar os olhos. O lugar era bem simples, até porque já não podia exigir muito. No letreiro um tanto enferrujado lia-se “MERCADINHO FAMÍLIA”, embora não fosse nada acolhedor.
            - Mais alguma coisa?- naquele instante ele lhe recordou algo, mas que fugiu assim como veio.
Seus olhos eram extremamente indagadores e ela tinha vontade de pedir um isqueiro.  Ele parado.
            - Uma caixa de fósforos, por favor.

Levou um bom tempo até chegar em casa. Não sabia se por pensar no rapaz ou mesmo para saborear o trago, porque sabe, a noite costuma ser fria (e a brasa pouca).  Mal havia entrado em seu novo lar e já sentia o cheiro de mofo que tanto a atordoava. Bebeu o resto da água que havia sobrado num copo largado em cima do caixote que fizera de mesa. Tinha gosto de decadência. Perséfone apareceu sorrateiramente e aninhou-se entre suas pernas. Mal sabia que o tempo de filé mignon havia acabado. Teria de aprender a caçar ratos, como ela estava aprendendo. No fundo era essa a vida que sempre quis ter. Sem perfumes, sem anjo da guarda, sem cores (um apartamento cinza), só ela e sua gata.

Acordou por força do hábito, e em pouco tempo os raios de sol já vinham açoitá-la pela janela. Deitada no chão mirava as manchas de infiltração do teto e seus bizarros desenhos entre notas musicais. Perséfone ronronava num canto. Agora sim sabia que solidão era a companhia mais fiel. “Ainda bem que é o fim do inverno, logo ela volta do submundo”- pensou. Ficou ali, calma, enquanto os automóveis tinham pressa na avenida.

Sua mesa improvisada parecia tão longe, sentia-se exaurida, gasta até a última gota. Seus desejos eram os mais ínfimos: uma caneca de café forte e quase frio; abandono. A tarde cinza era sem sol, sem chuva, sem graça.

A noite chegou sem que ela ao menos se movesse. A lâmpada piscava, piscava e não queimava, porque algo ainda a conservava. Talvez tenha a missão de iluminar seu fim. Um inseto impertinente zumbindo ao redor em busca da luz, a faz lembrar as pessoas. Aquelas que cumpriam os mesmos padrões, embalagens e conteúdo, nos quais ela não se enquadrou. Olhou a garrafa de conhaque vazia e nesse momento era tudo isso: vazia. Não merecia sentimento algum dentro de si, nem mesmo o conhaque culinário mais vagabundo, sequer retocar o batom. Sabe que sua verdadeira face é aquele estado lastimável, embora quisesse tanto ser uma rosa, tão vermelha quanto sua vida. Sim, lembrava agora de suas noites mal iluminadas por uma luz avermelhada. E só. Não dormia para não ter que sonhar, até que seu tempo findou. O movimento na avenida continuava. A lâmpada piscou outra vez. Ela apagou.

4 comentários:

Náhira Brunelle disse...

Belo post! Faz lembrar "a hora da estrela - Clarice Lispector"

Bom saber que voltou a escrever aqui, futura jornalista!
beijo grande, lindinha

Duane. disse...

Antes de ler passei o olho pelo texto, movida pela minha agonia que você bem conhece de querer sempre o final antes do início. Li mercadinho família e deu um troço bem an alma sabe? Do tipo, nesse momento faz exatamente meia hora que choro sem parar.
Eu te amo, e sinto sua falta.

Duane. disse...

man, eu venho aqui todo dia só pra ler isso: "No letreiro um tanto enferrujado lia-se “MERCADINHO FAMÍLIA”, embora não fosse nada acolhedor."
huahauhua s2

Daniel Gustavo disse...

O.o Bom texto! Me surpreendeu. Pai perguntou se vc naum copiou de algum lugar. rsrs